CENTO E VINTE ANOS DE MISTÉRIO

domingo, 15 de junho de 2008

O livro "Portait of a Killer - Jack the Ripper Case Closed", de Patricia Cornwell, uma das mulheres que mais thrillers vende no mundo inteiro, tinha finalmente sido editado, com a chave para desvendar um mistério com quase 120 anos - quem foi a pessoa que durante o outono de 1888 aterrorizou o East End londrino matando prostitutas e que ficou conhecido como Jack The Ripper? Cornwell responde de prontidão - dizendo que foi um artista pós-impressionista razoavel-mente famoso no Reino Unido de nome Walter Sickert - e apresenta indícios de DNA, naquela que foi a primeira tentativa de resolver um crime com mais de um século recorrendo às mais modernas tecnologias.

Mas o balão midiático que apresentaria a solução para um dos crimes mais populares de sempre esvaziou depressa. As provas de Cornwell não são nem conclusivas nem contundentes, e mesmo que queiramos acreditar com todas as nossas forças nas teorias da criadora de Kay Scarpetta, a médica forense que é um às para resolver mistérios, precisamos de uma boa dose de boa vontade para engolir a sua versão. Só para dar um exemplo, é a própria Patrícia Cornewell que admite que é incapaz de provar que Sickert terá sequer estado em Londres na época dos crimes geralmente associados a Jack, The Ripper, quanto mais ter sido ele o autor.
Depois de se ler o mediocremente escrito "Portrait of a Killer" e depois de se verem filmes e consultadas dezenas de artigos e sites sobre a saga de Jack, o Estripador, só ficam três certezas, além da saturação com o assunto:
1- Ninguém faz idéia de quem foi ele ou ela ou eles.

2- Acreditar que foi um suspeito é mais uma questão de fé, ou intuição, do que de provas.
3- Jamais se provará quem foi.
Londres, 1888 - Para se perceber o que aconteceu em Londres, no East End, em plena época vitoriana, é preciso saber que a região era agitada. Por um lado imunda, cheia de prostitutas, bêbados e indigentes da pior espécie, por outro, agitada, com toda espécie de mercadores a vendendo de tudo em Whitechapel e, finalmente, com os teatros e galerias de arte chamando as classes mais altas, numa mistura que fazia da capital inglesa um centro cosmopolita por excelência. De noite, a iluminação era quase inexistente e a polícia, tal qual a conhecemos hoje, só começara a existir há poucos anos e ainda era vista com maus olhos pela população. Os métodos de investigação nada tinham a ver com o rigor de hoje em dia, e quanto à medicina forense, o seu papel decisivo de desvendar crimes ainda estava distante. Tudo isto bem explicadinho por Patrícia Cornwel.
Assim sendo, não é de a escritora de best-sellers se espantar que Jack, o Estripador tenha conseguido escapar, porque se não foi capturado então, a qualidade e autenticidade dos indícios que hoje perduram são de tal forma questionáveis que a lista dos suspeitos inclui, para sermos
cínicos, todos quantos vivessem na época em Londres e tivessem mais que um metro e meio de estatura. Jack, o Estripador não terá sido o primeiro serial killer da história, mas foi o primeiro a espalhar o terror numa metrópole e a matar com jeito daquilo a que hoje apelidamos de "psicopata", deixando aberto o ventre de suas vítimas, por vezes com tal requinte que ainda há quem pense que o assassino teria treino médico. O Estripador talvez tenha sido o primeiro assassino a ser perseguido pela imprensa o que, já naquela época, serviu para ampliar o terror e a especulação, transformando um caso de polícia numa novela que teria sido alimentada pelos próprios jornalistas, que provavelmente enviavam cartas à polícia simulando serem eles o Estripador, apenas com o propósito de gerar "notícias quentes".
Ninguém pode dizer que tem certeza sobre nada que diga respeito aos crimes e Whitechapel. Jack teria sido morto com certeza entre quatro a seis prostitutas, entre agosto e novembro de 1888. Depois, teria parado, mas ainda hoje a Scotland Yard recebe cartas do Estripador, uma correspondência que começou pouco depois do primeiro homicídio - uma delas vinha assinada "Jack, The Ripper", dando origem ao nome com que ficou conhecido o criminoso. O caso foi encerrado oficialmente em 1892 e as poucas provas e relatórios que existiam foram sucessivamente roubadas, perdidas e até destruídas pelos bombardeamentos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Mas a verdade é que ainda hoje existem avanços insistentes na investigação dos "ripperlogistas", fanáticos e fascinados pelo caso, o que faz com que cada qual tenha a sua teoria devidamente sustentada por todas as ambigüidades e extrapolações possíveis e imaginárias. De uma conspiração real - poderia ter sido o príncipe de Gales, Albert Victor -, a um médico, passando por vários loucos que morreram pouco depois em asilos, até membros do parlamento, americanos, mulheres (Jill, The Ripper) e até, vejam só, Lewis Carrol, o autor de "Alice no País das Maravilhas", há pelo menos uma boa dúzia de fortes suspeitos. Outras teorias dizem ainda que a polícia resolveu o caso mas nunca revelou a identidade contribuindo assim para a gigantesca teoria da conspiração em que se transformou a história, a ponto de os locais do crime serem, ainda nos tempos atuais, uma atração turística.

Entra Patricia - Patricia Cornwell é uma mulher muito rica. A sua popularidade, sobretudo nos Estados Unidos, mas também na Europa, deve-se à série de livros que publicou em que a médica legista Kay Scarpetta se faz de Sherlock Holmes e prende os mais tenebrosos e sádicos criminosos. A sua obra é de ficção, mas nos "casos" publicados os avanços científicos na área da criminologia são muito bem aplicados. Por isso, não é de se espantar que, com James Patterson e John Grisham, ela complete o trio de autores de thrillers que mais vendem no momento. Antes de se dedicar à ficção, a escritora foi repórter criminal num jornal em Charlotte e trabalhou no necrotério de Richmond durante seis anos, onde, desde apontar lápis a pesar órgãos humanos, fez de tudo - ou pelo menos é o que dizem as suas biografias.
Cornwell topou com o caso do Estripador por acaso. Estava em Londres, em maio de 2001, quando surgiu a oportunidade de visitar a Scotland Yard. O passeio podia até ser aproveitado num dos próximos livros, uma vez que, como ela própria admitiu em "Portrait of a Killer", nada sabia do caso, "nem sequer que as suas vítimas eram prostitutas". Pois bem, nos próximos 18 meses, Patricia Cornwell pôs tudo de lado e concentrou todos os seus recursos, incluindo seis milhões de dólares, o departamento de investigação forense da Virginia, inúmeros antiquários que iam comprando para ela material relacionado com o caso, os governos americano e inglês, que criaram uma relação "oficial" para isto, e gente e mais gente trabalhando com um objetivo: provar o que ainda não tinha sido provado, ou seja, que Jack, o Estripador tinha uma identidade.
Cornwell começou a "suspeitar" do artista Water Sickert quando folheava um livro com os seus quadros. A violência das telas e os pontos comuns dos modelos pintados com algumas das vítimas do Estripador pareceram-lhe suficientes para que se concentrasse em Sickert. Mais tarde e depois de muito sondar e de ter comprado quase tudo o que lhe aparecia relacionado com o pintor, provou que o DNA Mitocondrial do artista (obtido a partir de roupas que usava para pintar, já que Sickert, morto em 1942, foi cremado) era compatível com vestígios encontrados em duas das cartas supostamente enviadas por Jack - são mais de 600, das quais ela analisou 250, ainda que, para a maior parte dos peritos no caso, nenhuma tenha sido enviada pelo verdadeiro assassino. Ao longo da sua obsessão, a escritora concluiu várias outras coisas: que o talento artístico de Sickert era suficiente para disfarçar a letra nas cartas; que ele só pintava o que realmente via e que há telas que correspondem aos crimes, pelo que ele seria o autor; que Sickert teria um defeito congênito no pênis o que o encaixaria no perfil de criminoso sexual de Jack, o Estripador e que, basicamente, Sickert era hiper-inteligente, manipulador e violento, traços gerais aceitos como fazendo parte da personalidade dos psicopatas. E, como Sickert tinha sido ator antes de se tornar pintor, teria ainda a capacidade extra de fingir ser quem não era. Para levar a sua teoria avante, Cornwell chegou a destruir um dos quadros de Sickert - um artista muito bem cotado - o que escandalizou muita gente.
Então, porque é que Jack parou? Bom, para Cornwell, a suposição correta é a de que ele teve medo de ser apanhado e teria se dedicado a continuar os seus crimes longe de Whitechapel, qualquer coisa que ela também se revela incapaz de demonstrar.


Walt, o enigma - Sickert morreu em 1942 e, para Cornwell, era um psicopata. O problema, se quisermos ver as coisas assim, é que a escritora levou o seu papel longe demais e se transformou numa justiceira das eventuais vítimas de Sickert, incluindo as suas mulheres que terão sido maltratadas e todos quanto ele manipulou ao longo da vida. Em declarações surgidas pouco tempo depois da edição do seu livro, Cornwell afirmou: "Sempre que olho para a cara dele (referindo-se a um auto-retrato do pintor que adquiriu) penso você não vai escapar ". Outra das pistas que contribuíram para a convicção da americana é o fato de algumas das tais cartas virem assinadas "Nemo", o que quer dizer ´ninguém´ em Latim. Ora, quando Sickert foi ator era conhecido como "Mr. Nemo". Os "ripperlogistas" (os fanáticos pelo caso) não hesitaram em se lançar à garganta da escritora americana. Dizem que o verdadeiro Jack nunca escreveu nenhuma carta e que, se escreveu, o papel utilizado era comum na época e não seria só Sickert a usá-lo. Afirmam que a tal amostra de DNA Mitocondrial prova que 1% da população de Londres - umas 30 mil pessoas - o poderia ter feito, porque, ao invés do DNA que é único, o MitDNA é comum a grupos de populações. Além do mais, o tal DNA tem no mínimo 100 anos, o que faria com que nenhum júri ou juiz o aceitasse como prova. Dizem ainda que as cartas que restaram são de tal forma díspares no seu conteúdo, estilo, tipo de letra e proveniência que é impossível saber quais serão as verdadeiras e as falsas, quanto mais poder afirmar que foram enviadas por Sickert. No máximo, os "ripperlogistas" admitem que Sickert possa eventualmente ter forjado uma ou duas cartas, fingido, também ele, ser o verdadeiro Estripador. Quanto ao defeito congênito no pênis de Sickert, não há uma única prova - o que Cornwell também diz -, apenas conjecturas, já que o suspeito da escritora foi operado por duas vezes de uma fístula, quando tinha 4 ou 5 anos e, de fato, nunca teve filhos, pelo menos legítimos e reconhecidos. Mas nenhum registro médico escapou. Finalmente, e pelo visto através de outras várias correspondências, há provas que Sickert estava na França quando dos crimes, não em Londres. É bem verdade que a suspeita sobre Sickert tem origem na própria Scotland Yard, e que o ator e depois pintor conhecia muito bem a região de Whitechapel e que há aspectos da sua vida citados no livro que nos fazem acreditar que ele não era mesmo "um santo". O que parece é que Patricia Cornwell entrou num beco sem saída. Mas ela, pelo menos, montou uma gigantesca operação, envolvendo o seu livro em sigilo e anunciando aos quatro ventos que tinha resolvido o caso, o que deve ter coberto o investimento

1 comentários:

andretta disse...

Ótimo artigo. Realmente o livro é mais uma prova dos devaneios vazios e da mania de grandeza da autora do que uma investigação séria do caso. Ela não retorna aos fatos para buscar um assassino, isso porque, logicamente, ela não encontraria um. Ela sim, tomou um partido e tenta de toda forma sustenta-lo, calcado em devaneios e sustentado em argumentos fracos e pouco convincentes. O que é uma pena. Coitado do pintor, que teve uma de suas obras destruídas pela escritora num surto de grandeza. Lastimável.