O HAITI É AQUI?

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Em carta endereçada a um grupo de intelectuais, o professor da UFBA,Jorge Nóvoa, responde , comenta aspectos do socialismo, fala sobre democracia,revolução,liberdades individuais, tortura e a relação entre Cuba, Estados Unidos e Guantánamo

Jorge Nóvoa, entre
outras atividades intelectuais, éDoutor
pela Universidade de Paris 7 - Denis Diderot, 08 de março de 1985; Pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) 1998-1999; Professor Convidado da Universidade de Paris III - Sorbonne Nouvelle (Departamento de Cinema e Audiovisual - 2003;

“Existe algum inferno maior do que Guantánamo? Ou o Haiti é aqui?

Bom dia amigos,

Gostei muito que você respondesse ao meu e-mail que teve apenas o objetivo de saudar as pessoas e de incitá-las a refletirem e a se posicionarem sobre um escândalo internacional que parece passar despercebido. Obrigado pela atenção de sua resposta e pela precisão sobre Guantánamo. Eu conhecia a origem histórica desse “cancro”, muito embora pouca gente tenha conhecimento. O modo como coloquei a questão foi para contemplar a fórmula de um orientando meu da Pós. Na verdade somos tão carentes de espaços como este que estamos realizando agora...! Eles não substituem nem livros, nem artigos, nem mesmo os Congressos e reuniões diversas. Não sei por que isto não ocorre mais vezes.

Todavia, a questão da relação do governo cubano e do povo cubano com essa base militar, desde o início da Revolução Cubana, colocou um problema fundamental: é possível o socialismo numa pequena ilha? Granados também fez uma Revolução e muito antes do acordo espano-estadonidense que rende a Cuba os miseráveis 5 mil dólares aos quais você se refere, uma revolução foi feita pelos negros haitianos que terminou fracassando. Por quê? Vários foram os motivos, mas com certeza o isolamento pesou substantivamente. Mas uma série de experiências se saldou por fracassos semelhantes, da Comuna de Paris à Revolução de 1917, à Revolução Espanhola, e à chinesa também. Isto coloca o problema, portanto, não da incapacidade de um povo de realizar uma revolução, mas de afirmá-lo e desenvolvê-la e expandi-la. Sem dúvida que os problemas são complexos e não permitem esquemas conclusivos, mas não há como negar que este aspecto da revolução permanente tal qual Marx a prognosticou – e Trotsky desenvolveu até as últimas conseqüências políticas - é uma aquisição central para a luta pelo socialismo no século XXI. Além disso, se trata de uma verdadeira aquisição para a interpretação da própria história e de seus processos sociais. Assim, em que pese todas as responsabilidades dos dirigentes e frações dirigentes da Revolução Espanhola no que concerne a suas escolhas táticas e estratégicas e às suas alianças políticas concretas, o isolamento da revolução na Espanha, ajuda substantivamente explicar os seus fracassos. Com certeza, fracassos esses que se explicam porque são ao mesmo tempo conseqüências das políticas (táticas e estratégicas) de seus dirigentes. Poucos compreenderam (e por que) a sorte da Revolução Russa estava dada em grande medida pela vitória ou pelo fracasso da Revolução Alemã, Húngara, etc. Isto pesou de modo decisivo na explicação do fato, por exemplo, de Trotsky não ter se mobilizado para a realização de um Golpe de Estado

em 1924, 15 e 26. Claro que as lutas internas das massas na URSS também pesaram na sua avaliação, além da compreensão definitiva do
fato de que os golpes não cumprem os objetivos da revolução. Não sei até que ponto Che Guevara teve consciência disto, mas é a mesma dialética que explica sua saída de Cuba. Estamos discutindo assim a dialética da revolução e da contra-revolução no interior e no exterior dos espaços que realizaram revoluções.

Sem dúvida, se democracia não concorda com tortura, Guantánamos nem goulags de nenhuma espécie, muito menos o socialismo. Tudo bem: ele não existe na face da terra. Mas este é o ponto de partida da reflexão e não o de chegada. Socialismos tenham eles as faces que tenham, não brotarão como cogumelos. Mas é preciso também que os setores que representam o aspecto subjetivo dessa empreitada histórica queiram que eles tenham determinadas faces e não outras para que eles se realizem com tais e tais características e não outras. Ou seja: o nosso ponto de partida para a análise do “socialismo” cubano não pode ser apenas a inexistência de socialismos, nem de democracia plena no mundo. Diferentemente de você eu não tenho dúvida de que nos países mais “democráticos” (Noruega, Finlândia, Dinamarca, Suécia, França, Inglaterra, Espanha) não existe verdadeira democracia. Existem torturas e existem censuras e as privatizações são um aspecto da política neoliberal. As conquistas democráticas e sociais que os movimentos sociais que os movimentos diversos realizaram e realizam, as concessões arrancadas de uma mão são tomadas pela outra. E se as bases materiais e sociais de classes subsistem, sem dúvida que eles permitem ao fascismo sobreviver de modo proto ou ordinário, aparecendo com toda a sua face em políticas específicas, sem que seja necessário a seus militantes e dirigentes aparecerem como protagonistas. A natureza política fascista se acha no registro de DNA do capital e desde sua acumulação primitiva, histórica e só desaparecerá quando ele desaparecer, se ele desaparecer sem a humanidade.

É verdade que em países como os nossos esta realidade parece mais feia, pelas favelas, pelo desemprego e pela miséria. Mas se tratam de diferenças de quantidade. Mas se olharmos bem os EUA, suas eleições, sem índice populacional que se encontra abaixo do limite de pobreza é assustador. E Bush que foi eleito para realizar a política que está realizando, não foi eleito livremente. As eleições não foram apenas fraudadas. Foram também “encurraladas” como no Brasil, por exemplo. Bandos armados, semelhantes às SS nazistas (sem farda) vasculharam os redutos “democráticos” e que votariam no candidato democrático e ameaçaram de mortes seus militantes. Eu conheço gente que sofreu de tal experiência. Dos espancamentos e de possíveis mortes, nós não temos notícias. Sobre a questão de tortura em Cuba e a liberdade de expressão, são dois medidores importantes do nível de sua democracia. Durante a Revolução, também ocorreram julgamentos sumários e tortura física, conquanto toda uma discussão se tenha realizado no seio dos dirigentes revolucionários sob a questão da ética revolucionária e da qual o próprio Che foi um dos principais mentores. Depois também, infelizmente. Eu não vou falar do Benigno, que foi se tornou companheiro de Che nas montanhas de Cuba e a quem, dentre outras coisas, agradece a Che de tê-lo alfabetizado e que se acha exilado na França, depois de ter sobrevivido à experiência boliviana fugindo a pé pelo Chile. Ele não pôde permanecer em Cuba porque quis cobrar contas aos dirigentes cubanos. Dois livros relatam sua experiência, ele que foi um dos braços direitos de Che – sem falar de Camilo Cienfuegos que desapareceu misteriosamente no dia do seu casamento dois ou três anos depois da tomada do poder:

1) Dariel Alarcón Ramírez e Mariano Rodríguez. Les survivants Du Che. Monaco. Éditions du Rocher. 1995 (não traduzido no Brasil);

2) Dariel Alarcón Ramírez « Benigno ». Vie et mort de la révolution cubaine. Paris, Fayard, 1996. (também sem tradução)

Ou será que se pode colocar uma única questão: porque não se deixa os “desertores” da Ilha se ir embora? Qual a necessidade de prendê-los na Ilha contra a vontade deles? Um amigo meu me contou que uma vez estava passando férias na Ilha de Itaparica - que fica em frente a Salvador, na sua baia, portanto, e encontrou num dos seus hotéis, algo como 15 jovens estudantes com idades entre 19 e 25 anos. Faziam parte de uma banda de rumba que veio se apresentar em Salvador. Este amigo - que tem casa em Itaparica, depois de ter simpatizado com eles que se interessavam muito pela música brasileira, convidou-os para que fossem até sua casa, escutar música, num sábado à noite. Eles aceitaram dizendo que teriam que falar com o chefe da equipe. Mas certo mal estar já havia se instalado pelo simples convite. No dia marcado, meu amigo telefona para confirmar. Das evasivas não se saiu até uma negativa mal disfarçada, mas sem explicação assumida. De são consciência, desse socialismo eu não quero para os meus filhos e, portanto, eu defendo as conquistas da revolução (educação, saúde, etc.) e o povo cubano. Existe assim, pelo menos uma questão que pode ser colocada diante da constatação que Cuba fez uma revolução, mas não é socialista. A questão que pode ser colocada é: em Cuba, hoje, nas condições que são as suas, é possível se aprofundar conquistas democrático-socialistas? Minha resposta é sim. Os organismos de elaboração dessa política precisam ser desenvolvidos e chamados a elaborar sua política. Trata-se de condição sine qua non da sobrevivência de qualquer revolução popular.

Desgraçadamente, e você tem razão, não se faz uma revolução sem violência. Mas existem violências e violências e diferentes alvos que sofrem sua ação. Uma coisa é você durante a luta pela tomada do poder usar dar armas de fogo, outra coisa é você fazer prisioneiros e arrancar suas unhas para que eles delatem seus superiores ou subordinados e outra coisa é impedir-lhes de que possam dizer, dessa democracia eu não quero, muito particularmente quando não existe troca de fogo permanente, quando não se está numa guerra aberta. Tudo bem: Cuba permanece sob bloqueio econômico. Mas afinal não é melhor que os “dissidentes” saiam do que mantê-los próximo? O filme Antes de anoitecer no qual Javier Barden vive o papel do poeta cubano Reynaldo Arenas, discriminado e perseguido por ser homossexual, nos ajuda muito a pensar qual o socialismo que queremos. Cuba não alcançou o socialismo porque estatizar a produção, mesmo a do grande capital, não é suficiente para alcançá-lo. O blóqueio econômico imposto pelos EUA, não é justificativa para que medidas de construção de um progressivo governo dos trabalhadores possa ser empreendido. O povo precisa aprender a governar através de seus organismos de conscientização, organização e expressão (seus jornais próprios) e para que estes se transformem em um poder efetivo. Educação e saude são conquistas muito boas que a Noruega, a Suécia, a Dinamarca etc., também efetivaram sem que possamos dizer que se tratam de países democráticos. A Alemanha de Hitler acabou com o desemprego, inclusive contra muitos capitalistas. Ademais, a maior educação e a maior saude deve ser revelada pela capacidade desse povo poder discutir livremente, se organizar livremente, porque senão vai ficar sempre a questão: para que que serve o socialismo, senão como obra dá emancipação e para a emancipação dos trabalhadores? Quanto ao bloquéio a união de vários países latino americanos (Brasil, Bolívia, Venezuela, Equador, etc.) podem bem ajudar pelo menos a amenizar.

São outras questões que precisamos discutir. Precisamos sair urgentemente daquela posição que, por pretender que o socialismo – como dizem alguns é uma utopia e por definição não existe em lugar algum – não há porque colocá-lo na ordem do dia. Subordinado a essa perspectiva está aquele velho argumento que perdurou como subproduto das frentes populares e do estalinismo da necessidade de acumulação de forças e da revolução por partes. Há quem defenda com grande capacidade de contorção que a China descobriu a verdadeira via para o socialismo: o desenvolvimento pleno de um capitalismo dirigido por mandarins vermelhos. E assim, enquanto discutimos a acumulação de forças até para discutir o socialismo, a humanidade entrou há muito tempo numa escalada vertiginosa e muito pouco consciente para a maioria da população, de destruição quando, ao mesmo tempo, a chamada globalização, fundiu os tempos históricos de todos espaços. O socialismo hoje, especialmente para quem se reividica de Marx e de suas teorias, é o patamar mínimo necessário do qual qualquer reflexão precisa partir.

Obrigado pela atenção e bom domingo para todos.

Abraços, Jorge ”

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